In Fine, por Margarida Balseiro Lopes

>> domingo, 20 de dezembro de 2009

Regiões Administrativas

A divisão tradicional do País é muito antiga. Aparece pela primeira vez no testamento de D. Dinis, datado de 1299. Às unidades desta divisão atribuir-se-á, um século depois, o nome de comarcas; já no decurso do século XVI surgem também as províncias, que acabariam por prevalecer. No século XVII, a província era uma circunscrição militar, sem qualquer interferência nas Câmaras Municipais: os generais que comandavam cada uma das províncias tinham atribuições civis – como a polícia e ordem pública. A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 acabaram por consagrar a divisão provincial, sem as dotar de órgãos administrativos próprios. Em 1828 gera-se a polémica nas Cortes, reunidas após a outorga da Carta Constitucional: uns defendiam a divisão do Reino em províncias e outros que, temendo os poderes dos governadores destas circunscrições, defendiam a divisão em comarcas ou distritos.

O Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832 (de Mouzinho da Silveira), dividiu o país em províncias, comarcas e concelhos e colocou à frente de cada uma das 8 províncias um órgão executivo, o Prefeito. Esta foi uma reforma muito contestada pela oposição radical que era contra as províncias, dada a impopularidade da figura do Prefeito, para além de que defendia que só as comarcas deveriam ser supramunicipais. Os partidários do Governo queriam antes as províncias e pretendiam suprimir as comarcas. Ambos queriam apenas uma autarquia supramunicipal. Acabou por se chegar a um compromisso (estabelecido pela lei Rodrigo da Fonseca), em 1835, que deu lugar ao nascimento do distrito. No entanto, a lei de 1835 mantém a província, não como autarquia local ou circunscrição administrativa, mas para o efeito de enquadrar a localização dos vários 17 distritos. Já em 1867 se procurou reduzir o número de distritos para 11, era uma forma de voltar às províncias sem dizer o seu nome (nas palavras do Professor Marcello Caetano). No entanto, em 1872 o Código Administrativo de Rodrigues Sampaio mantém o distrito, que se torna uma autarquia local, mantendo-se como autarquia local até 1892. De 1913 a 1917, o distrito recupera a sua condição de autarquia local. Na Constituição de 1933 surgem 2 entidades acima do município: o distrito e a província, mas só esta última era autarquia supramunicipal. Enquanto o distrito era uma mera circunscrição administrativa sem carácter de autarquia local, que funcionava como área territorial de jurisdição do Governador Civil, a província era uma associação de concelhos com afinidades económicas, geográficas e sociais, destinada a exercer atribuições de fomento, coordenação económica, cultura e assistência. Na Revisão Constitucional de 1959, é substituída a província pelo distrito como autarquia supramunicipal. O problema das províncias, que se prendia com as suas atribuições, mantinha-se com os distritos. Em suma, a província surge, na história portuguesa, como uma emanação espontânea dos municípios, federados para efeitos do desenvolvimento económico e social; o distrito surge como prolongamento do poder central, que quer estar presente localmente para efeitos de tutela e coordenação dos municípios.

Na Constituição de 1976, não se contemplou os distritos como autarquia supramunicipal devido à má experiência recente, nem as províncias porque era um regresso ao passado. Criou-se assim a região administrativa. Já existia desde 1969 uma divisão regional, as Regiões e Planeamento, mas que não passavam de circunscrições de administração local do Estado. Actualmente, já não incluem os Açores e a Madeira, estão na dependência do Ministério do Ambiente, são as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDRS’s – DL 194/2003 de 23 de Maio) e continuam a ser um produto de desconcentração da acção do Estado. As autarquias locais são hoje as freguesias, os municípios e as regiões administrativas (236º CRP). As regiões administrativas são autarquias locais supramunicipais, que visam a prossecução daqueles interesses próprios das respectivas populações que a lei considere serem mais bem geridos em áreas intermédias entre o escalão nacional e o escalão municipal.

Mas, importa traçar as diferenças que existem entre as regiões administrativas continentais e as regiões autónomas insulares: as regiões continentais são autarquias locais, enquanto as regiões insulares são verdadeiras regiões político-administrativas; as regiões continentais regulam-se pelo Direito Administrativo estadual e têm apenas poderes administrativos, as insulares por estatutos político-administrativos elaborados por elas próprias, aprovados na AR, tendo para além de poderes administrativos, poderes legislativos e participam (parcialmente) no exercício da função política do Estado. Os órgãos das regiões continentais têm órgãos administrativos e o seu executivo é uma junta, as regiões autónomas insulares têm órgãos de governo próprio e o seu executivo é um governo – o Governo Regional. A dissolução dos órgãos regionais no Continente compete aos tribunais, diferentemente, nas regiões insulares compete ao Presidente da República. Em síntese, as regiões administrativas continentais são entidades administrativas, que exercem funções de auto-administração, enquanto as regiões autónomas insulares são entidades políticas, que exercem funções de auto-governo.

E, é fundamental começar por traçar os limites e contornos entre poder político e administrativo, sendo as regiões enumeradas no artigo 255º da CRP apenas administrativas. Como propõe Sérvulo Correia, na função administrativa deve incluir-se "não só a actividade de execução das leis” mas também a actividade "cujo objecto directo e imediato consiste na produção de bens ou na prestação de serviços destinados à satisfação das necessidades colectivas". A função política traduz-se numa actividade de ordem superior que tem por conteúdo a direcção suprema e geral do Estado, tendo por objectivos a definição dos fins últimos da comunidade e a coordenação das outras funções à luz deste fim". Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa considera como funções primárias do Estado a função política e a legislativa, estando em contraposição a estas, as funções secundárias entre as quais a função administrativa que "compreende o conjunto dos actos de execução de actos legislativos traduzidos na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do “Estado-colectividade".
Deve assim pôr-se em evidência que as pessoas colectivas descentralizadas não dispõem do poder de decidir livremente acerca da sua competência; esta é-lhes outorgada pelo poder político através de actos legislativos e sempre dentro das balizas que a Constituição traça. O poder administrativo mais não pode fazer que executar as decisões do poder político e que este verteu em lei. É através das competências que são dadas aos órgãos das pessoas colectivas com funções administrativas que aqueles exercem e prosseguem as atribuições que a lei lhes confere.

No que respeita às atribuições das regiões, o legislador ordinário há-de confiar às regiões aqueles interesses públicos cujo nível óptimo de decisão não seja, nem o municipal, nem o nacional, mas sim o escalão intermédio entre ambos – o escalão regional. Os artigos 257º e 258º da Constituição elencam as atribuições (mínimas) das regiões: dirigir serviços públicos, isto é, dirigir os serviços que a lei criar como serviços regionais, ou por transferência do Estado para a região (transferência para baixo), ou por transferência dos municípios e suas associações para as regiões (transferência para cima), ou ainda por transferência da administração periférica do Estado para a região (transferência horizontal); coordenar e apoiar a acção dos municípios da respectiva área, no respeito da autonomia destes e sem limitação dos respectivos poderes; elaborar os planos regionais de desenvolvimento económico e social; participar na elaboração dos planos de desenvolvimento económico e social de âmbito nacional previstos nos artigos 90º e seguintes da Constituição. A Lei-Quadro das Regiões Administrativas concretiza um pouco mais estas directrizes constitucionais, no artigo 17º, atendendo ao princípio da subsidiariedade, referido também no n.º 4º deste diploma. No entanto, este artigo 4º estipula que a definição das atribuições, competências e recursos da região não pode retirar nem ao Estado nem ao município. Há uma subversão do princípio da subsidiariedade.

A ideia que subjaz à regionalização é: a descentralização do Estado, através das transferências para baixo, isto é do Estado para a região. E, grandes parte das tarefas é já desempenhada pelo Estado ou pelos municípios. O próprio planeamento regional é já feito pelas CCDR’s, que são órgãos do Estado. O princípio da subsidiariedade deve levar a cabo uma repartição de atribuições entre a comunidade maior (Estado) e a comunidade menor (município) para que a comunidade maior só as tenha de realizar, quando a comunidade menor não for capaz disso. Desta forma, a administração central do Estado não deve ocupar-se das funções que possam ser bem desempenhadas pelas regiões, nem estas se devem intrometer no que for melhor resolvido pelos municípios, nem estes hão-de chamar a si o que puder ser mais bem feito pelas freguesias. Na opinião do Prof. Freitas do Amaral, este artigo 4.º é ilegal e inconstitucional. Ilegal porque contraria frontalmente a Carta Europeia da Autonomia Local, aprovada pela resolução n.º 28/90 da AR. É inconstitucional porque contraria os princípios da subsidiariedade e da descentralização democrática da Administração pública (art. 6/1 CRP), bem como o princípio da aproximação dos serviços às populações (267/1 CRP) e porque entre os art. 235º a 265º não se vislumbra a secundarização da região em relação ao Estado. Trata-se de fazer uma delimitação entre os interesses públicos de carácter regional que devam continuar a cargo do Estado e os que devam passar para a esfera própria das regiões.

A Constituição no artigo 259º enumera dois órgãos da região: a assembleia regional e a junta regional. A Assembleia Regional compreende, além dos representantes eleitos pelos cidadãos, membros eleitos pelas Assembleias Municipais, em número inferior ao daqueles (260º CRP). A Junta Regional é o órgão colegial executivo da região, eleita por escrutínio secreto, pela Assembleia Regional de entre os seus membros. Haverá junto da região, um representante do Governo, nomeado em Conselho de Ministros: o governador civil regional, que será um magistrado administrativo e autoridade policial.

As regiões administrativas, apesar de previstas na Constituição desde 1976, nunca foram criadas, tratando-se para o Prof. Fausto de Quadros de uma inconstitucionalidade por omissão. Há já uma Lei-Quadro das regiões administrativas (lei n.º 56/91) e uma lei de criação das regiões administrativas (lei n.º 19/98 de 28 de Abril). Para além destes dois diplomas, é necessário o voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores em referendo e depois a aprovação da lei de instituição em concreto de cada região. Em 1998, houve um referendo sobre a regionalização em que venceu o Não. O Prof. Fausto de Quadros sustenta que o projecto de 1998 visava constituir regiões, mais do que administrativas, políticas.

No entanto, o processo de regionalização não está encerrado, tendo há poucos meses reacendido o debate. Importa antes de mais clarificar o conceito de regionalização: é a criação de entidades públicas novas, autónomas, chamadas regiões, com órgãos próprios de decisão, eleitos em sufrágio directo e universal pela população residente em cada região e dotados de competências próprias para resolverem os seus próprios assuntos, através dos seus próprios recursos humanos, materiais e financeiros. Em primeiro lugar, cabe definir que funções poderão ser entregues às regiões: poderão desempenhar funções no âmbito dos seus próprios bens e serviços, património, finanças e funcionários; ou funções transferidas pelo Estado para a região, através de um processo de descentralização; ou ainda funções transferidas pelos municípios para a região, por se chegar à conclusão de que serão mais bem desempenhadas ao nível da região do que ao nível do município. A segunda questão que se coloca é o critério da divisão do país, ou seja, o modelo, com que fronteiras, com que características económicas, sociais, administrativas. Por fim, e não menos importante é definir o sistema de afectação de recursos financeiros às regiões: tem que existir descentralização e autonomia financeira!

Quanto à divisão do território, há dois grandes modelos em alternativa: o modelo da grande região (que daria cinco ou seis regiões administrativas no Continente português, lembrando as Comarcas da Monarquia Tradicional) ou pelo modelo da média região (dez ou onze regiões, à semelhança das províncias dos séculos XIX e XX). A região-comarca é mais favorável ao planeamento económico; como é uma grande unidade heterogénea, é possível ao nível das potencialidades e deficiências haver uma compensação; confere maior peso às decisões e declarações dos órgãos regionais; envolve menor dispêndio na instalação das regiões. As vantagens da região-província: a tradição histórica é-lhe mais favorável; consegue-se uma maior polarização dos entusiasmos regionais; constituem menor perigo para a unidade nacional; maior facilidade na resolução do problema político da divisão regional do Alentejo; melhor articulação com as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

A existência de inúmeros preceitos constitucionais sobre a regionalização torna mais complexa a sua execução (na opinião do Prof. António Cândido de Oliveira). Em França, por exemplo, puseram-se em funcionamento as regiões (1986) e só quando se tornaram consensuais é que foram introduzidas na Constituição (2003). A Constituição impede a criação de uma região piloto, uma vez que exige que sejam criadas em simultâneo. Antes da Revisão Constitucional de 1997, bastava que a lei criasse as regiões administrativas do continente e depois exigia-se o voto favorável da maioria das assembleias municipais nela inscritas, devendo essa maioria corresponder à maioria dos eleitores dessa região. Mas na realidade o que trouxe de novo a Revisão Constitucional de 1997? Passou-se da consulta às assembleias municipais para uma obrigatória consulta directa dos eleitores, através do instrumento do referendo. O referendo deverá ter duas questões: uma de alcance nacional e outra de alcance regional. O resultado do referendo só é vinculativo caso o número total de votantes seja superior ao número e eleitores. É também necessário que haja 50% de votantes em relação aos recenseados naquela região. Exige-se ainda que se publiquem as leis que instituem cada região administrativa, isto é, cada região teria a sua lei, sendo esta uma matéria de reserva absoluta da AR (164º alínea n). Ou seja, na prática a Constituição revelou-se contra a Regionalização, com este jogo constitucional “sem-fronteiras”, que torna dificílima a implementação das Regiões.

Mais importante do que sermos pró ou contra este processo, devemos assumir uma postura de seriedade e definir de vez: ou se avança realmente para a regionalização ou se estabelece definitivamente que as únicas autarquias locais em Portugal são a freguesia e o município.

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