A Escaldar, por Nélson Faria
>> segunda-feira, 30 de março de 2009
1ºTema - Aborto
Poucas matérias dividem tão profundamente a sociedade portuguesa como o aborto. Esta questão não é nem fácil, nem simples, nem deve ser abordada de ânimo leve: o aborto é uma medida de recurso, a que se deve recorrer de forma excepcional e após reflexão. Há muitas visões e muitas percepções, e há muitos erros cometidos que inquinam o debate: há quem minore, na fúria da discussão, o sofrimento e os dramas pessoais de quem recorre ao aborto; há quem despreze o valor intrínseco do ser humano não-nascido.
Não devemos cometer tais erros: temos de assumir que, sim, recorrer ao aborto é uma tragédia, que é o culminar de decisões difíceis e dramáticas, motivado muitas vezes pela falta de perspectivas económicas ou familiares, em angústia pelo futuro; temos de ver que a riqueza e a originalidade da vida humana não pode ser ignorada em nenhuma das suas fases, que pretendemos calar a nossa consciência em refúgios científicos infundados.
Que tipo de lei devemos defender? Acredito que ao absolutizarmos o princípio da vida, ao instaurar uma lei absolutamente inflexível, traremos o que de pior tem os extremismos: a desumanização. A lei tem de ter uma orientação para a preservação da vida porque ao falar de vida humana a nossa lei não pode ser indiferente ou neutra; mas esta orientação para a preservação da vida, terá de deixar espaço para que casos excepcionais permitam resoluções excepcionais: perigo de vida para a mãe ou abuso sexual, como exemplos.
A actual lei é uma vitória de uma deturpação dos direitos humanos, associada a uma crise de valores societal em torno da maternidade. A mentalidade dominante, a nova conjuntura “eficientista”, insiste em apresentar a maternidade consciente como um estorvo ao nosso percurso pessoal, promovendo uma visão egoísta e arrivista. A maternidade tem de voltar a ocupar um lugar central na nossa sociedade, de grande reverência e acolhimento: maternidade não é encargo, maternidade é dom.
A família é cada vez menos núcleo, menos célula da sociedade, e cada vez mais um aglomerado de unidades que, na prossecução da felicidade individual, tentam traçar um caminho de conjunto rumo à felicidade. A grande luta no século do relativismo ético centra-se nas nossas consciências, no combate ao predomínio do isolamento do Homem em que só o que nos acontece nos diz respeito, numa visão desagregadora da sociedade que nos empurra docemente para o buraco da indiferença.
Temos que agarrar a nossa humanidade, recuperar os nossos valores e não capitular perante o facilitismo e indiferença; perante a proclamação do interesse individual como princípio, temos de responder com a entreajuda e com a superior mais-valia do ser humano: a solidariedade, compreensão e acolhimento. Um aborto realizado é um pedido de ajuda que ficou por responder: não podemos fazer ouvidos moucos a quem precisa de nós.
4 comentários:
Penso que, o principal problema da sociedade actual são os valores, aliás, a falta deles. É aceitável e perceptível que uma pessoa que tenha sido sexualmente abusada tenha o direito a abortar, é aceitável e perceptível que quando a vida da mãe corre perigo, esta tenha o direito a abortar . É legítimo que tenha a hipótese de escolher. Mas não existem casos em que, mesmo assim, a mãe decide ter o filho? Existem. E porquê? Porque valores como o amor, entreajuda, solidariedade e muitos mais que poderia enumerar, sobrepõem-se ao egoísmo que o aborto sem causa justa representa. No mundo de hoje, adere-se cada vez mais às soluções rápidas e eficazes e passa-se por cima daquilo que é moralmente correcto. Como tudo na vida, o aborto tem o lado mau e o lado menos bom mas cabe a cada um ter o bom senso de optar pelo lado certo.
Liliane
Há muito que venho afirmando que vivemos numa sociedade em plena degradação de valores.
Acho que se caíu num facilitismo intolerável.
Acho que hoje existe uma banalização sexual arrepiante e choca-me a idade precoce como que se inicia determinados comportamentos.
Quanto ao aborto já muito escrevi, já muito opinei.
Já analisei nas diversas vertentes. Fico-me pela juridica, hoje.
A Constituição protege a vida humana e não a pessoa humana. Isto é, se estivesse postulado pessoa humana, poderia, ainda, existir cabimento juridico-constitucional para esta norma que despenaliza o aborto. Sendo vida humana, e estando provado, que muito antes das 10 semanas, existe vida humana, não me parece justificável.
Uma palavra para o texto fantástico do Nélson Faria. Muito, muito bom, contar com ele no Laranja Choque.
E um agradecimento para ti Liliane, pela assiduidade com que comentas aqui no blogue.
Liliane,
Essa é sem dúvida a principal batalha. Trocámos a busca pela felicidade pela busca do prazer, e pelo caminho perdemos a capacidade de desfrutar de toda a experiência humana, com o bom e o mau.
E esta capacidade é essencial para chegarmos à felicidade: o prazer é rápido e instantâneo, mas também fugaz; a felicidade implica apreciar todo o caminho, satisfeitos em toda a inteireza. O prazer, a solução rápida, deveria ser detalhe, e não objectivo ;)
Tiago,
Subscrevo a 100% o que escreveste sobre o tema.
Quanto ao resto, obrigado pelas palavras, mas o texto só aparece graças ao teu desafio ;)
É por providenciares este espaço que podemos trocar ideias, e é aos que criam espaços de discussão que temos todos de estar agradecidos.
Grande abraço
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